O Processo de aquisição do discurso
DANIELA PANNUTI1
Como as crianças aprendem a conversar?Considerações sobre os processos de aquisição da linguagem.
O que é o ouvir? O ver? O sentir? O pensar? Como comunicar isso tudo e fazer-me com o mundo?
Grandes questões que as crianças se colocam no dia-a-dia e demonstram no seu jogo de construção da realidade! Apenas brincando!
Atualmente está muito difundida a idéia de que a oralidade é um aspecto importante no desenvolvimento infantil, enfatizando a relevância de atividades e propostas que promovam a linguagem oral em creches e escolas de Educação Infantil. Porém, no contato cotidiano com educadores, percebemos que este ponto, aparentemente pacífico, acaba por ser pouco trabalhado em sua especificidade, uma vez que nem sempre se tem clareza de quais os conteúdos a serem contemplados nesta área ou mesmo como trabalhá-los. Este texto se propõe a discutir questões relacionadas ao tema, situando teoricamente os processos de aquisição de linguagem, estabelecendo relações com a prática, de forma a instrumentalizar os educadores nesta significativa e importante tarefa de promover a comunicação e interlocução entre seus alunos e com o mundo que os cerca.
A escola ensina a falar?
Vários autores contribuíram para a compreensão da linguagem e suas repercussões, entre eles, Vigotsky, que considera a linguagem como um exercício social, uma vez que pressupõe a relação entre os falantes, permitindo também relações interpsíquicas, que participam da construção de funções mentais superiores tais como imaginação, memória, planejamento, entre outras.
Neste sentido, ao trabalhar a linguagem oral com as crianças pequenas, devemos ter sempre em foco o caráter relacional deste exercício, evitando propostas descontextualizadas ou que não tratam da língua em toda a sua complexidade, como, por exemplo, situações de conversa burocratizadas ou artificiais, que acabam por perder o sentido por não se configurarem como espaços de comunicação e interlocução. Com base nestas informações, podemos afirmar que a escola não ensina a falar, por ser este um processo muito mais amplo, mas tem participação decisiva nesta aprendizagem, uma vez que pode atuar garantindo que as crianças desenvolvam e ampliem suas capacidades comunicativas de forma a se expressarem cada vez com mais precisão, contando com esta habilidade para a compreensão do mundo que as cerca.
A parceria entre as crianças e os educadores
O processo de apropriação da linguagem por parte de criança é individual, cada uma trilha o seu próprio caminho até alcançar o domínio sobre a língua, e este nunca acaba, pois existem sempre múltiplas possibilidades de comunicação e atribuição de significados.
O adulto, parceiro da criança neste caminho, tem uma grande responsabilidade neste processo, uma vez que a fala da criança se constrói a partir desta relação: ela entra na língua pela via do outro e gradativamente vai adquirindo a possibilidade de falar por si mesma. É este outro que vai significar a fala da criança, e, conseqüentemente, a própria criança, uma vez que sua fala reflete o efeito de sua significação no outro. Neste sentido, é muito importante que os educadores compreendam estas dinâmicas, para que possam atuar sempre em sintonia com os processos vivenciados por seus alunos.
Segundo a psicanálise e outras teorias que buscam formas de compreender o desenvolvimento humano em toda a sua potencialidade, a criança vivencia três momentos em seu percurso de aquisição de linguagem:
* o primeiro caracteriza-se pela imitação, é a fase do espelho, na qual a criança está na esfera do outro, reproduzindo sua fala ou necessitando de sua intermediação constante para comunicar-se.
* o segundo consiste numa posição transitória, na qual a criança começa a experimentar a língua ainda sem ater-se a normas e regras, ela aplica sua plasticidade e maleabilidade à linguagem, produzindo o que chamamos de “erros construtivos”, ou seja, ela ainda não escuta a diferença entre sua fala “personalizada” e a fala adulta, ou convencional.
*o terceiro momento se inicia quando a criança passa a perceber a norma e escutar a diferença entre sua fala e a do outro, comparando-a e corrigindo-a de acordo com o que considera correto. A partir daqui a criança já dispõe de mais autonomia e independência para conversar, porém, paradoxalmente, também valoriza cada vez mais a conversa com o adulto, uma vez que este confere a ela um status de falante.
Podemos concluir, então, que aprender a falar não se limita a memorizar sons e palavras, ou então repetir frases e canções descontextualizadas de sua realidade e experiência. Mais do que isso, conversar na escola pressupõe uma ampliação do universo discursivo saindo da inércia e cristalização da linguagem; é romper com a dialética entre saber e ensinar e abrir as portas para a fala que expande por si só.
Objetivos, conteúdos e orientações didáticas para educadores implicados na construção do discurso oral
Segundo os RCNEI, “as instituições de Educação Infantil deverão organizar sua prática de forma a promover as seguintes capacidades nas crianças: participar de variadas situações de comunicação oral, para interagir e expressar desejos, necessidades e sentimentos por meio da linguagem oral, contando suas vivências, interessar-se pela leitura de histórias, familiarizar-se com a escrita por meio da participação em situações nas quais ela se faz necessária e do contato cotidiano com livros, revistas e outros portadores, ampliar gradativamente suas possibilidades de comunicação interessando-se por conhecer vários gêneros orais e escritos”. Para atingir tais objetivos, é essencial que o educador identifique os conteúdos a serem trabalhados em cada atividade proposta, planejando, estudando e refletindo sobre sua atuação, assim como registrando o percurso de seus alunos.
Atualmente, sabemos que a aprendizagem envolve uma combinação entre atividades novas e desafiadoras e outras já familiares às crianças, integradas na direção da construção de novos conhecimentos. A oralidade, a leitura e a escrita devem ser trabalhadas paralela e concomitantemente, de forma a se complementarem.
Conforme já colocado anteriormente, as diversas situações cotidianas reais e nas quais as crianças são expostas a conversas e interações contribuem para que se apropriem deste código. É por isso que o adulto deve utilizar a fala de forma clara e correta, sem infantilizações e cuidando para falar o mais corretamente possível.
É importante também que o professor se coloque como um interlocutor real, interessado pelas trocas comunicativas com as crianças. Para tanto, ele precisa permanecer atento às colocações de seus alunos, ouvi-los, buscando atribuir sentidos e significados dentro dos contextos e experiências da realidade das crianças. Muitas vezes, as crianças conversam segundo uma lógica própria, regulada por uma forma de pensar específica, denominada pensamento sincrético. Esta é uma construção postulada por Vigotski, para explicar as plásticas relações entre idéias e conceitos elaborados pelas crianças.
Não podemos esquecer que todas as colocações infantis trazem consigo uma intenção, por vezes não as compreendemos, mas precisamos ouvi-las buscando significados e viabilizando a comunicação. Neste sentido, cabe ao professor apoiar e promover a conversa real e significativa.
Muitos educadores consideram desnecessário planejar atividades específicas para o trabalho com a linguagem oral, justificando que ela está sendo trabalhada durante toda a rotina escolar, uma vez que estamos sempre falando com as crianças. Porém esta é uma idéia equivocada, pois a linguagem incidental não trata de conteúdos específicos e próprios da área, tais como o relato, a entrevista, o debate, os jogos orais como parlendas, trava-línguas, poemas, entre outros.
A roda de conversa, tempo de compartilhar, ou qualquer que seja a denominação dada ao momento diário em que as crianças têm a oportunidade de conversar em grupo, de modo organizado, trocando experiências, contando novidades, falando, perguntando, respondendo, expondo idéias, dúvidas, descobertas e inquietações, é um espaço privilegiado de diálogo e intercâmbio de idéias, que promove a ampliação das capacidades comunicativas, aumento do vocabulário e, principalmente, ensina as crianças a valorizar o grupo como instância de troca e aprendizagem.
Esta atividade pode tornar-se muito significativa para as crianças se for adequadamente trabalhada pelo educador. Mesmo com bebês ou crianças bem pequenas, já é possível iniciar um trabalho de construção da roda de conversa: pode-se iniciar organizando o espaço em que esta atividade será realizada e escolher com as crianças um canto da sala, prepará-lo com um tapete, ou almofadas, selecionar objetos para conversar a respeito, ou um livro para ler, ou até mesmo uma brincadeira que facilite a percepção para o novo espaço, com todos sentados juntos, se vendo e produzindo coletivamente.
Regularidade e freqüência são essenciais para a introjeção dos procedimentos necessários para o bom funcionamento da roda de conversa. É preciso que as crianças saibam o que se espera delas, como devem comportar-se e isso pode ser explicitado pela participação interessada do educador, que num primeiro momento deve intermediar e apoiar a participação das crianças e conforme elas forem adquirindo mais possibilidades discursivas, ele passa o papel principal às crianças, atuando como um diretor de cena que busca potencializar a participação de seus atores.
Cabe, também, ao educador respeitar e valorizar diferenças étnicas e culturais de seus alunos, assim como garantir um espaço para que elas possam ser trabalhadas no grupo. Dar lugar à narrativa, seja oral ou escrita, assim como incluir em sua prática os diferentes gêneros discursivos, contribui para a aprendizagem da língua e da cultura.
No caso das crianças pequenas, é interessante que o educador apóie e instrumentalize a fala de seus alunos através de questões e intervenções estruturantes e organizadoras do discurso, ajudando nos resgates de memória, descrições, relatos, entre outros.
Para as crianças maiores é importante que o educador entenda que as formas adequadas de ouvir e escutar podem ser construídas pelo grupo. Esta experiência coletiva é muito significativa para as crianças, que aprendem assim a respeitar e valorizar a conversação.
Compreender que a escrita é uma das formas de representação da fala é um passo importante para a entrada no processo de alfabetização. Pesquisas e investigações na área, como as realizadas por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, nos mostram que as crianças já trazem inúmeras idéias a respeito da escrita antes de começar a ler e escrever autonomamente. Sendo assim, é interessante que o educador explore tais hipóteses e acompanhe seus alunos neste rico caminho, buscando identificar em que momentos desta aprendizagem as crianças se encontram para propor intervenções adequadas para cada um deles.
Segundo as pesquisas de Ferreiro e Teberosky, todos que se alfabetizam passam por etapas semelhantes ao longo deste processo, que podem ser classificadas como:
1) nível pré-silábico: Neste momento inicial, a escrita é, para a criança, algo diferente do desenho. Ela já sabe que escrever e desenhar são ações diversas e imagina que para escrever são necessários símbolos diferentes daqueles usados para o desenho, porém ainda não está informada sobre quais são eles. Conforme vai tendo contato com textos e situações reais de uso da escrita, a criança vai percebendo que para escrever são utilizadas letras e, em seguida, descobrirá dois importantes princípios para a formalização de suas hipóteses sobre os sistemas de escrita: as variações quantitativas (é preciso um número mínimo de letras para escrever uma palavra) e qualitativas (é necessário um número mínimo de variação de caracteres para formar as palavras). A criança prosseguirá explorando possibilidades de escrita, inicialmente utilizando um repertório de letras mais limitado e familiar, como, por exemplo, as letras que compõem seu nome, para gradativamente ampliar estes conhecimentos. A descoberta de que a escrita apresenta um valor sonoro leva a criança a novas formulações.
2) Nível silábico: Esta hipótese representa um salto qualitativo no processo de construção da escrita, já que é a primeira hipótese que de fato obedece a um critério relacional entre as unidades da escrita e da linguagem oral, a chamada “correspondência sonora”. É neste momento que as crianças começam a estabelecer os primeiros vínculos de correspondência entre fala e escrita, acreditando inicialmente que para cada emissão sonora é necessária uma única letra. Percebemos, nesta fase, a importância de considerar as contradições e conflitos pelos quais as crianças passam como movimentos essenciais para a apropriação do sistema de escrita. Mais uma vez, o contato regular com textos e atividades envolvendo a escrita contextualizada e significativa vão contribuir para novos avanços neste processo, até as crianças buscarem no repertório de letras conhecidas aquelas que trazem os sons adequados para o que desejam representar.
3) Nível silábico-alfabético: Este nível caracteriza-se como um período de transição, em que a criança mantém e questiona, simultaneamente, as relações silábicas, e por isso as escrituras incluem sílabas representadas por uma letra e outras com mais letras. É uma etapa em que as crianças se deparam com incongruências em suas produções, e estas devem ser tematizadas e discutidas em sala, pois são muito úteis para novas conquistas.
4) Nível alfabético: Ao atingir este ponto, a criança já domina o sistema de escrita, uma vez que já compreendeu que para cada som existe uma sílaba, ou conjunto de letras correspondentes. Ao reconstruir o sistema lingüístico, experimentando seu funcionamento na prática, é possível escrever tudo o que a criança deseja, sendo necessários apenas ajustes relacionados à ortografia, à separação de palavras, às regras de pontuação, entre outras.
Neste sentido, mais uma vez insistimos no papel da escola como espaço de formação e não somente informação, pois, como sabemos, não é suficiente conquistar a base alfabética para tornar-se um bom leitor ou escritor. Para isso, é necessária uma experiência mais ampla de contato com a linguagem em toda a sua complexidade, trabalhando a diversidade textual, as situações de produção de textos a interlocutores reais, assim como a literatura em toda sua riqueza, desde os primeiros momentos de trabalho pedagógico.
Finalizando, podemos concluir que a conversa em sala de aula é fundamental para o desenvolvimento social e individual da criança, importante para o domínio e boas relações com a língua, que serão úteis para toda a vida, uma vez que a linguagem permeia diversas formas de construção do conhecimento. A escola, então, pode funcionar não somente como um espaço de transmissão e acúmulo de informações, mas como um lugar de produção de conhecimento, habilidades e aprendizagens, formando sujeitos mais críticos, autônomos, e prontos para a reflexão.
Garantindo na Educação Infantil uma experiência rica e cuidadosa com a linguagem, possibilitamos que as crianças levem consigo não somente uma ferramenta, mas também novas formas de relacionar-se com o mundo.
NOTAS:
1 Psicóloga, formada no Instituto de Psicologia da USP, especialização em Psicologia Infantil na UNIFESP. Coordenadora pedagógica da Escola Criarte,SP. Capacitadora do Projeto de Múltiplas Linguagens do CEU - Centro de Educação Unificada da Prefeitura de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário